Eu sempre acreditei que algumas receitas nascem primeiro na cabeça da gente, muito antes de chegarem à panela. Elas começam como uma vontade difusa, um desejo de textura, de aroma, quase uma memória afetiva pedindo para voltar. Foi assim com esse arroz doce.
Era um domingo frio, daqueles em que a janela fica meio embaçada e a luz entra suave pela casa. Trilha sonora preguiçosa, nenhum compromisso urgente, só aquele tempo suspenso que o fim de semana às vezes nos oferece. Eu poderia ter ficado no sofá, enrolada numa manta, fazendo nada. Mas tinha uma lembrança insistente: o arroz doce que minha mãe fazia quando eu era pequena. O dela era simples e perfeito, do jeito que a cozinha caseira sabe ser. Arroz, leite, açúcar, um pouco de canela, e pronto. A casa inteira parecia ficar mais acolhedora quando a panela começava a borbulhar. Não tinha nada de “gourmet”, mas tinha amor em fogo baixo, o que, convenhamos, é o melhor ingrediente que existe.
Hoje, no entanto, minha cabeça funciona um pouco diferente. Gosto de estrutura, de pensar nas etapas, quase como quem desenha um pequeno projeto. Penso em textura, contraste, temperatura, fragrância. É o meu lado que gosta de organizar tudo se manifestando na cozinha: pesar ingredientes, alinhar potes, escolher a panela certa, ajustar o timer mental.
Então, peguei essa memória do arroz doce da minha mãe e resolvi vesti-la com uma roupa um pouco mais sofisticada, sem perder o abraço quente da lembrança. A base continua sendo o arroz cozido lentamente no leite, até ficar macio e delicado, mas é na finalização que a mágica acontece. Primeiro, a baunilha. Não qualquer baunilha: favas generosas, abertas com cuidado, sementinhas raspadas com carinho e mergulhadas no leite quente. O perfume que sobe da panela é quase uma promessa, e um aviso de que a casa inteira vai cheirar conforto por algumas boas horas. É aquele tipo de aroma que faz qualquer um largar o que está fazendo e ir até a cozinha “só para ver”.
Depois, entra a parte que transforma um bom arroz doce em algo quase indecente de tão cremoso: o creme de leite batido em ponto de chantilly, incorporado delicadamente ao arroz já pronto e quase frio. Não é simplesmente misturar; é envolver, trazer leveza, criar uma textura que fica entre sobremesa de colher e abraço em forma de nuvem. A cada mexida, o arroz vai ganhando brilho e um volume macio, como se tivesse sido arejado por dentro.
E então, o contraste: um caramelo profundo, com aquele tom âmbar que só aparece quando a gente tem paciência de deixar o açúcar escurecer no ponto certo, finalizado com flor de sal. A flor de sal tem esse papel quase teatral: entra em cena apenas no final, em pequenas pinceladas, para despertar o paladar e equilibrar a doçura. É o toque que faz a colher voltar ao pote, quase sem a gente perceber.
Montar o prato vira, também, um pequeno ritual: o arroz doce ultra cremoso, a fita de caramelo escorrendo por cima, alguns grãozinhos de flor de sal salpicados com parcimônia. O contraste entre o arroz cremoso e o levemente mais denso do caramelo, entre o doce e o salgado, entre a lembrança da infância e o refinamento da vida adulta. Tudo ali, numa tigelinha.
Enquanto eu comia, sentada à mesa com a xícara de chá ao lado, percebi que esse arroz doce traduz bem o momento: um pé na memória, outro na vontade de criar algo novo. A mesma ideia de comfort food, mas com camadas a mais: de sabor, de textura, de história. É como se eu tivesse pegado o domingo lá de trás, na cozinha da minha mãe, e trazido para o hoje, com um pouco mais de técnica, alguns caprichos extras e a mesma necessidade de aconchego.
No fim das contas, cozinhar, para mim, é isso: planejar o suficiente para que tudo funcione, mas deixar espaço para o afeto, para o improviso, para aquela colherada a mais de caramelo que “não estava no script”. Esse arroz doce de baunilha e caramelo com flor de sal nasceu assim: de um domingo frio, de uma certa saudade e da vontade de transformar lembranças em sobremesa.
E posso garantir: sofisticado ou não, continua sendo simplesmente delicioso.
Beijos para vocês!
Rendimento: 4 Porções
Tempo de preparo: 30 minutos
Ingredientes
Arroz Doce
130g de arroz para sushi (arbóreo também funciona bem)
60g de açúcar
700g de leite integral
2 favas de baunilhas
250g de creme de leite fresco
Caramelo salgado
90g de açúcar
40g de manteiga
125g de creme de leite fresco (35% de gordura)
Flor de sal a gosto
Modo de preparo
Arroz doce
- Lave o arroz e deixe escorrer por 10 minutos.
- Transfira o arroz para uma panela e adicione o leite, o açúcar e as favas de baunilha: abra as favas no sentido do comprimento, raspe as sementes e coloque tanto as sementes quanto as vagens na panela.
- Leve a mistura ao fogo médio, mexendo sempre, até que o arroz esteja cozido, mas ainda levemente al dente. No meu caso, levou cerca de 20 minutos, mas prove o seu antes para garantir o ponto.
- Transfira o arroz para uma tigela e cubra com filme plástico em contato com a superfície. Deixe descansar em temperatura ambiente por 1 hora. Descarte a fava de baunilha.
- Quando o arroz estiver em temperatura ambiente, bata o creme de leite até o ponto de chantilly. Incorpore-o delicadamente ao arroz doce, em movimentos envolventes com a ajuda de uma espátula. Reserve.
Caramelo salgado
- Aqueça levemente o creme de leite (sem deixar ferver) e mantenha-o ao lado do fogão.
- Em outra panela, faça um caramelo a seco com o açúcar: coloque o açúcar na panela em fogo médio e deixe derreter, mexendo apenas o necessário, até atingir a cor âmbar desejada.
- Acrescente a manteiga ao caramelo e mexa até incorporar completamente.
- Retire a panela do fogo e adicione o creme de leite em 3 etapas, mexendo bem a cada adição. Cuidado: o creme de leite fará o caramelo borbulhar e subir nas laterais da panela.
- Misture até ficar homogêneo e deixe esfriar antes de usar. Ajuste a flor de sal a gosto.
Montagem
Para servir, coloque uma porção do arroz doce em uma tigela e cubra com o caramelo salgado, na quantidade desejada.



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